As redes sociais ampliaram exponencialmente o que tradicionalmente é chamado de “tribunal da opinião pública”. Antes delas, os fatos divulgados nos noticiários de rádio, TV e Internet davam vazão a conversas de boteco, discussões nos jantares em família e, se mais graves, provocavam manifestações. Mas hoje em dia, todos temos o poder de opinar, julgar e condenar alguém, famoso ou não, 24 horas por dia, e com alcance mundial.
Assim é a cultura do cancelamento: milhares de pessoas têm acesso a uma notícia (que pode não ser um fato) e, por não concordarem com a conduta da pessoa em questão, não se contentam em analisá-la e oferecer sua opinião a respeito. Elas decidem denunciar o “infrator” de acordo seus conceitos (não os da lei) a todo mundo e todo o mundo. Avaliando a notícia exclusivamente, por meio de suas lentes de moral, adequação comportamental ou expectativa estética, vociferam sua sentença absoluta, e a compartilham sem filtro – muitas vezes, sem nem mesmo o filtro da verdade.
Essa imensidão de citações costuma precipitar julgamentos sumários, causando em alguns casos um gigantesco desgaste de imagem, sem que o sujeito “sob ataque” possa sequer se defender do tribunal inquisitório.
Existe uma diferença entre a “trollagem”, comum na Internet, às vezes com insultos ordenados, em disputas de opinião entre usuários das redes. Na política, com a polarização, e no futebol, isso é muito comum. Já o cancelamento é um ataque à reputação que ameaça o emprego, meios de subsistência atuais e futuros do cancelado, e indiretamente, sua família e amigos.
Palavras reproduzidas fora de contexto; atitudes lícitas e que dizem respeito à vida privada, e escolhas que refletem valores de uma época longínqua são o estopim para aqueles que não se interessam em se educar sobre assuntos variados e exercitar a análise crítica - eles só se interessam em “causar”.
São inúmeros os casos, desde a blogueira fitness, que foi flagrada mandando a saúde às favas durante a pandemia do novo Coronavírus, ao trabalhador americano que perdeu o emprego, pois alguém achou que ele estivesse fazendo um gesto racista. Carreiras e vidas estão sendo impactadas sem o menor cuidado com a veracidade ou (in)justiça das acusações.
Quais são as consequências para os “canceladores”?
Se o “agressor” que usar o próprio perfil nas mídias sociais para cancelar alguém acreditar que atinge apenas o “cancelado”, deve pensar duas vezes. Não se atentar aos fatos (ou render-se imediatamente às fake news) demonstra superficialidade e pouco uso da inteligência. Pessoas de seu convívio social e profissional podem mudar de opinião sobre a sensatez e moderação do justiceiro virtual, e até mesmo se afastar por medo de se tornarem sua próxima vítima. Injustiças podem ser cometidas mesmo na busca por justiça.
Como se prevenir?
Parece que não há, efetivamente, uma maneira de evitarmos sermos “cancelados”. Assim como a vizinha pode espalhar para o condomínio inteiro que você chegou embriagado em casa (quando você estava apenas voltando do efeito da anestesia), o que falam sobre nós nas redes sociais, e a velocidade como se espalha, estão fora do nosso controle.
A disputa em torno da "cultura do cancelamento" deve ser longa e difícil. O que causa consolo é que crítica a alguns de seus efeitos tem criado uma união entre diversas áreas do conhecimento e vertentes da cultura e da política que atuam em campos opostos.
Em alguns casos, medidas legais são impetradas com sucesso para impedir que o acusador repita a falácia ou se retrate – no entanto, infelizmente, o que está na Internet nunca desaparece de verdade. A sombra na reputação e a cicatriz causadas passam a acompanhar o atingido pelo julgamento, e dificilmente se apagarão.
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