É bem diferente de nós: quando uma criança krenak nasce, não vai para a creche, fica com a mãe, as avós e as tias. Partilham um quotidiano e um modo de estar na vida. As crianças indígenas não são educadas, mas orientadas. Não aprendem a ser vencedores, porque, para uns vencerem, outros têm de perder. Aprendem a partilhar o lugar onde vivem e o que têm para comer. Têm o exemplo de uma vida onde o indivíduo conta menos do que o coletivo. Este é o mistério indígena, um legado que passa de geração para geração. Ailton Krenak carrega no apelido a pertença à sua gente, o povo krenak. E a sua memória mais antiga é muito simples: “Eu não sei viver sozinho.”
O líder indígena esteve em Portugal para participar no Fórum Internacional de Festivais de Cinema de Ambiente, em Seia, onde realizadores de mais de 30 países estiveram reunidos e demonstraram preocupação com o rumo político do Brasil e as consequências na preservação da floresta amazónica. Ailton Krenak conversou com Christiana Martins, do diário Expresso.
“Numa das línguas nativas do Brasil que restaram, kren quer dizer cabeça, e nak é terra. Logo, nós somos a cabeça da terra. Escutando os velhos e perguntando sobre a nossa história, entendi que somos uma das últimas famílias de um povo que, quando D. João VI chegou ao Brasil, habitava uma região conhecida como a Floresta do Rio Doce. Os viajantes se referem a ela como uma floresta tão impressionante como a Mata Atlântica ou a Floresta Amazônica. Era uma muralha natural no caminho do ouro e dos diamantes que vinham do interior. Mas a Coroa precisava de dinheiro e os colonos não eram bobos e pressionaram D. João VI para que libertasse a entrada na floresta. Os nossos antepassados, chamados botocudos, resistiram bravamente a essa investida e a nossa aldeia foi o último lugar a ser colonizado, já tardiamente, por volta de 1910. Nessa altura ainda havia caçadores e recoletores andando nessa floresta. Para acabar com os botocudos, primeiro esses colonos que estavam expandindo as fronteiras internas do Brasil tiveram de devastar a floresta. Vejo um paralelo muito grande, passados quase 200 anos, com o que os brasileiros estão a fazer [agora], determinados a devastar a última grande floresta da bacia amazônica”.
“Em outras épocas, o meu povo já experimentou diferentes tipos de violência. Os botocudos foram aniquilados durante o século XIX e chegaram ao século XX quase extintos, ao ponto de sermos a única família. Os krenak têm memória da guerra descrita numa carta assinada por D. João VI, que se chamava mesmo 'guerra de extermínio à nação dos botocudos do Vale do Rio Doce'. Uma declaração de guerra contra o nosso povo.”
“A população de indígenas daquela região no final do século XIX era estimada em cinco mil pessoas. Só chegaram 140 indivíduos ao século XX. Era como se caísse uma bomba na Europa e ficassem umas cem mil pessoas para contar a história. Fomos vítimas de um genocídio e não há contabilidade possível. Os krenak voltaram a reunir 120 famílias. Se considerarmos cinco pessoas por família, somos pouco mais de 500. Vivemos dentro de uma pequena reserva, segregados pelo governo brasileiro, num campinho de concentração que o Estado fez para os krenak sobreviverem. Durante o período da ditadura, se constituiu num campo de reeducação, que na verdade era um centro de tortura. Já passamos por tanta ofensa que mais essa agora (do atual governo Jair Bolsonaro) não nos vai deixar fora do sério. Fico preocupado é se os brancos vão resistir. Nós estamos resistindo há 500 anos.”
Há 30 anos, perante a Assembleia Constituinte que redigiu a lei fundamental da então recém recuperada democracia brasileira, Ailton Krenak pintou o rosto de negro e declarou guerra aos congressistas. Lutava pelos direitos do povo indígena - e venceu. Mas diz que o tempo não se repete e que hoje não voltaria a tomar a mesma atitude: “Na década de oitenta abrimos trilhas para as novas gerações buscarem o reconhecimento dos direitos das populações originárias, os indígenas, e para conscientizar a população da importância de continuarmos tendo rios, montanhas, paisagens, florestas como recursos capazes de se refazerem ao longo do tempo e como uma riqueza a ser partilhada pelas gerações futuras. É um tipo de entendimento da terra como a nossa casa comum, mas o que tem prevalecido é a ideia de que diferentes lugares do planeta podem oferecer posicionamentos estratégicos para algumas potências ou ser simplesmente fonte de suprimento daquilo que estas potências querem controlar. E pequenas nações como o Brasil e a maior parte dos países da América Latina, ex-colônias, não tiveram sequer o tempo necessário para consolidar um pensamento acerca de si mesmos. Não tenho nenhuma ilusão acerca do futuro destas pequenas nações: ou vamos experimentar grandes transformações globais na relação entre os povos ou estas pequenas nações vão ser cada vez mais territórios de disputa e enclaves das potências que têm força para decidir o jogo, que não precisa nem de ser na ONU, é decidido no mercado.”
“O Brasil é pequeno no sonho. Sonha pequeno. Um território que não esboça uma visão soberana pode ser grande geograficamente, mas vai continuar sendo pequeno na sua expressão no mundo. A Amazônia é a maior floresta tropical do planeta que ainda tem condição de ser reguladora do clima e o Brasil quer derrubar a Amazônia. Por que eu vou achar o Brasil grande? O Brasil é menor do que a Amazônia. Eu queria que ele fosse maior.”
“A colonização que a Europa fez do resto do mundo desde os séculos XV e XVI imprimiu uma maneira de dominação que é como um vírus, é capaz de se auto reproduzir, inclusive nas colônias. E se o Brasil foi inseminado com esta ideologia colonialista, ele vai ser capaz de reproduzir isso infinitamente, enquanto não quebrar esse ciclo colonial. O projeto político de criar uma nação chamada Brasil é tão pequeno que chega a ser menor do que a Amazônia.”
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