Enquanto pesquisava sobre a guerra civil de Canudos, encontrei uma informação que não consegui colocar no livro “Entre as chamas, sob a água”. Era algo tão monstruoso, perverso e nojento, que não tive estômago para escrever. Talvez porque, quando escrevemos, rememoramos o que não vivemos, ouvimos os gritos e enxergamos as expressões nos olhos dos personagens. No caso, eram crianças, e para mim seria difícil demais construir a cena maldita.
Escrevo sobre isso agora, porque acredito que devo e, afinal, isso não é um romance. Por não ser um romance, posso ir direto ao fato: soldados do exército brasileiro achavam divertido afogar crianças de quatro, cinco, seis anos. Nessa idade, o corpo é muito leve, mais ainda tratando-se de crianças que viveram em Canudos. Portanto é muito fácil, sobre uma ponte ou um barranco, segurar os pequenos corpos pelos pés e arremessar longe nas águas. Simples assim. Cru assim.
O escritor costuma se aferrar diante do desumano, mas se desmonta diante do humano. Agora que toquei no assunto, caio em minha própria armadilha e se torna impossível não pensar nos olhos arregalados de um molequinho que via sua irmã de três anos engolindo água e se debatendo enquanto morria. Imagino que as crianças formavam naquele dia uma massa compacta de meninos e meninas que se agarravam, em tentativa inútil de buscar proteção uns nos outros.
Um menininho de quatro anos segura a mão do irmão de sete anos, que é seu herói, como são heróis tantos irmãos mais velhos naquele grupo. Então, o irmão herói é arrancado de sua mão e o menininho vê seu corpo afundar sob a água. Não há no universo, nem em arte alguma, como descrever o que se passou na cabeça daquele menininho assustado. Até que ele mesmo fosse arremessado para morrer. Até que todo o grupo de crianças fosse.
Assombra-me, seja lá em Canudos, seja hoje, imaginar momentos longos e lentos refletidos no olhar perplexo e grande demais de uma criatura que está para morrer, que vê o verdugo se aproximar e no entanto, em idade em que fantasia e realidade não estão ainda delimitados, não consegue conceber aquilo que chamamos definitivo.
Não sabem ainda, como sabemos nós adultos, o que é a morte. A morte para elas é quase uma impossibilidade; está sempre nos outros. Embora assustadora. Talvez por isso os comparemos a anjos. Para nós, que sabemos o que a morte é, um massacre de crianças por diversão será mais ou menos terrível do que o massacre por perversão?
Eu não tenho essa resposta. Para as vítimas, isso seria inútil. Mas para os vivos, aqueles que carregam ainda um pingo de humanidade, isso interessa. Se não temos respostas, podemos ao menos observar. Não dá para deixar de perceber que teremos sérios problemas e sofrimento profundo em uma civilização voltada apenas para o gozo completo, obrigatório e narcisista, exercitado em espaços virtuais desenfreados.
Violentos, sempre fomos. Perversos, também. Nossos soldados assassinos comprovam isso. Mas estamos piorando. Por absoluta falta de proteção intelectual, capacidade criativa e, portanto, leitora, estamos aderindo ao pior do que a pior cultura do mundo possui de sobra: o tal do bullying e o conceito de loser. Isso nos traz um reforço de ódio e ressentimento que enterra longe um país onde havia ainda certa cordialidade e laços humanos.
Esse mesmo tipo de modismo importado cria círculos particularistas voltados para o próprio umbigo, um verdadeiro “des-empoderamento” da sociedade civil e que, como todo particularismo, termina em fanatismo e exclusão. Acontece que poder, poder mesmo, poder de verdade, está nas mãos de cinco mil famílias que detém metade da riqueza do país.
Dinheiro jamais vai eliminar a perversidade, porém, com melhor distribuição de riqueza, maior bem-estar social e reforço intelectual, talvez a gente possa minimizar o sofrimento e o ódio, que são duas faces da mesma triste moeda em países injustos. O resto, é morte por doença ou massacre. Inclusive de crianças.
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