Há 75 anos, em Paris, era assinada a Declaração de Direitos Humanos pelas maiores potências do mundo – também pelas menores e as, então, consideradas irrelevantes. Todos estavam abalados pelos horrores da Segunda Guerra Mundial e, como crianças arrependidas, logo prometeram por escrito que mudariam, que fariam do mundo um lugar melhor.
Fizeram? No papel sempre cabe tudo. A história dos Direitos Humanos é feita de papéis, de declarações, de cartas – a começar pela Magna Carta de 1215, assinada pelo Rei João I da Inglaterra, mais conhecido como “João-sem-terra” e por ser um personagem coadjuvante nos filmes de Robin Hood.
Foi com João que a discussão por “terras” abriu o caminho para os direitos do homem: a igreja e os barões ingleses estavam revoltados com o exercício do poder absoluto do soberano, que lhe tomava as terras, lhe tomava os títulos, lhe tomava as riquezas e anulava sua dignidade. Com a Magna Carta, surgiram os chamados “Direitos Humanos de primeira geração”, ou “direitos de liberdade”, criados para proteger o povo contra os arbítrios do poder estatal.
Mas quem era esse povo? Nobres. Religiosos. Homens. Brancos. Ricos. Filhos legítimos. Estivesse você fora desse filtro, a opressão continuaria a mesma, na repetição interminável de abusos e esmagamentos sobre quem, claro, não era considerado humano.
Muitas declarações a sucederam: Habeas Corpus Act, 1679; Bill of Rights, em 1689; Declaração Americana, 1776; Declaração Francesa, 1789; tantos e tantos documentos, incluindo a Declaração Universal de Direitos do Homem, tema de nossa conversa, que logo a mesa do estudante de Direito estaria cheia de intenções por escrito para serem lidas para a prova.
Na faculdade somos convidados a estudar cada um desses documentos históricos e, ao contrário do que se poderia pensar, eles não são anacrônicos. Os textos são inspirados, dotados de genialidade e ainda úteis para a compreensão do Direito e do mundo. Ouso dizer: para a compreensão de nossa manifestação material nesse mundo.
Porém, a interpretação é sempre ao gosto do leitor. Há que se ter olhos para ler, ouvidos para escutar, o que torna imponderável o uso ou mal-uso de cada um desses documentos pelas gerações vindouras.
A Declaração de Direitos Humanos tem, em seu artigo primeiro, a seguinte redação:
“1. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.” Basta ler esse simples texto inicial para surgirem os questionamentos: a) o que são seres humanos?; b) o que é dignidade?; c) o que é “espírito de fraternidade”?
Esses conceitos não são ensinados na escola. Não são ensinados na cátedra. Às vezes, são ensinados em templos religiosos. Às vezes, pela família. Mas quem os escuta?
Aprendemos sobre eles quando aprendemos a amar. Infelizmente o amor se tornou um conceito piegas numa sociedade que estimula a competitividade. Como amar e disputar, como amar e querer subjugar? O destino do mais amoroso é ser desrespeitado, banido, considerado fraco – e, então, realimentamos o pensamento de que temos que “guerrear” para sobreviver na nossa sociedade.
Neste ano de 2023, duas grandes guerras estão humilhando nossas melhores intenções como humanidade. Numa delas, literalmente uma nação inteira foi tachada de “subumana” como justificativa para ser massacrada; crianças e suas mães jamais conseguirão ter o status necessário para ter sua “dignidade” respeitada. Tampouco a ONU, criada em 1945 e guardiã dos Direitos Humanos consegue cumprir seu papel de estímulo à “fraternidade”, diante do poderio financeiro de países que se consideram “desenvolvidos”.
Como mudar tudo isso, como encarar esses ciclos históricos de violência e manter o coração esperançoso? Novos textos, mais papel? Os conceitos amorosos que permitem iluminar as letras das declarações de direitos (humano, dignidade, fraternidade) nascem no seio familiar, pelas mãos de quem exerce a maternagem, independentemente da identidade de gênero, orientação sexual ou ligação biológica; nascem com o amor que alimenta as pequenas novas centelhas, que herdarão nossa bagunça se não conseguirmos – em nós – quebrar os ciclos infinitos de ódio e intolerância.
Parabéns, Declaração de Direitos Humanos. Feliz aniversário de 75 anos! Lamento que hoje você seja como uma avó testemunhando filhos e netos disputarem aquele seu terreninho de herança, puro mato, comprado há tanto tempo e que ninguém ofereceu ajuda para pagar o IPTU. A metáfora pode te parecer tola, mas já dizia Hermes Trimigesto: “o que está em cima é como o que está embaixo”, e nossa sociedade é apenas um grande fractal de cada uma de nossas famílias.
Autor: 337