Por Ivan Scarpelli
03 de Abril de 2024 | 08h00
A poeta e tradutora Anne Carson tem o costume de dizer que a tarefa humana mais difícil é a do toque. O toque tem como princípio proximidade e afeto. Muitas vezes, é verdade, promove resistência, mas isso também é um indicativo importante. Tocar e ser tocado é um exercício de expectativas, limites e permissões entre individualidades e suas vontades. Penso que o mesmo ocorre entre marcas, suas ofertas e seus consumidores. Há uma relação delicada entre estes mundos e um desequilíbrio latente nessa relação hoje: o toque das marcas parece agora longe de representar e auxiliar no crescimento pessoal de seus consumidores.
Nossa pesquisa realizada com 470 brasileiros entre 18 e 54 anos revela que as pessoas esperam o apoio das marcas no desenvolvimento de suas relações familiares e no crescimento das mulheres na sociedade. Também aponta que as tecnologias ocupam um papel fundamental para seus futuros. A contrapartida é a incapacidade dos entrevistados em dar nome para as marcas que poderiam lhes representar, seguida da descrença sobre os efeitos dos avanços tecnológicos em suas vidas nos próximos anos. Os números ajudam a entender.
Na medida em que 40% das mulheres entrevistadas revelaram pouco ou nenhum otimismo com seus futuros, 86% de todos os consultados reconhecem que as marcas têm papel importante ou muito importante para o desenvolvimento feminino. Quando perguntados sobre qual a marca que mais apoia as mulheres, a Natura (23%) surge em primeiro lugar, acompanhada muito de perto por “não sei/nenhuma” (20%). O mesmo acontece em temas relacionados à família. A pesquisa identificou que 63% das pessoas acreditam que as marcas têm a capacidade de minimizar uma eventual ausência familiar com suas propostas de valor e ofertas. Solicitados a apontar qual marca tem a cara da família brasileira, 26% não soube apontar uma organização que as represente nessa categoria. Somente a Coca-Cola (20%) aparece em segundo lugar, seguida por Sadia e Natura, com 10% cada. Na tecnologia, 41% dos entrevistados acreditam que os novos recursos tecnológicos diminuirão oportunidades de empregos e 53% entendem que o digital ajudará a ampliar a ocorrência de doenças mentais. Marcas como TikTok, Tinder, Facebook e X (antigo Twitter) são apontadas como as que mais trazem desconfiança por seus usuários.
A capacidade das marcas tocarem verdadeiramente as pessoas existe. Mas está em descompasso com a construção de futuros que conversem com realidades e necessidades de diferentes pessoas. Há algo além dos números que indicam onde e como ocorre o consumo, estimulados pelo marketing de performance e suas métricas que ampliam o papel dos usuários e diminuem a importância humana. Aos primeiros sobram soluções binárias – esse ou aquele produto, condicionados nas gôndolas ou cestas de compra online. Já a segunda parcela opera em um sistema de complexidades conectadas com necessidades históricas, cumulativas e que buscam reconhecimento e cuidados que não são óbvios.
Marcas consolidadas devem fazer um exercício de revisão irrestrito de suas trajetórias tendo em vista essa perspectiva, reconhecendo que negócios fazem parte da vida social. Essa ponderação profunda amplia o entendimento de que existem temas sensíveis e questões polêmicas que precisam ser tocadas e que demandam novos posicionamentos para um novo mundo, com exigências contínuas e cumulativas. Novas marcas precisam ficar de olho nos movimentos atuais e futuros e entender como é possível mudar um ambiente com tantas necessidades a partir de ofertas mais adequadas para as pessoas. É preciso compreender as demandas de suas audiências e definir o impacto desejado para a organização sob uma perspectiva menos da quantificação, mas mais da evolução humana.
O princípio para que essa verdadeira terapia de marca ocorra está nos compromissos culturais da empresa. Uma cultura genuína nasce da escuta e se consolida a partir do cuidado coma as demandas históricas que estão na sociedade. Ao lançar um novo produto ou serviço, é necessário se perguntar se a nova oferta de fato atende as pessoas que confiam na marca e se ela vai estimular mudanças no ecossistema no qual o negócio atua. Todos os produtos ou serviços devem ser idealizados de acordo com estes princípios, tornando-os mais autênticos e distintos em relação à concorrência. É preciso ainda pensar no acesso que o público terá a esse produto ou serviço e em sua política de preços e, aí sim, construir uma política de vendas associada com suas metas e resultados.
Expressão difícil para a realidade dos negócios de hoje, o tipo de afeto descrito por Anne Carson revela a busca humana da troca justa e ampla. As marcas que desejam se estabelecer no tempo e na História precisam estabelecer sua atuação também dentro deste limite: o de que suas ofertas representam impacto verdadeiro na realidade e futuros de milhões de pessoas. É preciso reconhecer no toque de quem consome e precisa de representação uma mensagem de revisão de rotas. É esse o começo para novos futuros, inspirados pela humanidade e por toda sua História. A demanda existe. As pessoas pedem. Elas só não reconhecem, ainda, os protagonistas desta jornada.
Ivan Scarpelli
Ivan Scarpelli é sócio-fundador da Bloomers, consultoria de inovação e conhecimento que amplia o papel de marcas e profissionais criativos no redesenho e desenvolvimento de estratégias, experiências e soluções conectadas com os melhores futuros para pessoas, comunidades e negócios.